A Fábula nas Sombras de Mami Wata

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por Tati Regis

Apesar de não estar muito familiarizada com o cinema nigeriano e de ter assistido a poucos filmes dessa região até agora, reconheço a importância e o impacto dessa indústria cinematográfica. A Nigéria é um dos maiores centros de produção de filmes no mundo, especialmente através do movimento Nollywood, que se destaca não só pela quantidade, mas também pela diversidade de histórias e abordagens culturais. É fascinante ver como o cinema africano tem ganhado cada vez mais visibilidade global, abordando temas universais sem perder suas raízes. Nesse contexto, ao assistir Mami Wata, um filme que mistura fantasia, suspense e mitologia africana, percebi o quão essencial é explorar e dar voz a narrativas autênticas vindas de espaços de tamanha riqueza cultural e histórica, mas que ainda não recebem a atenção que merecem. 

Mami Wata mergulha nas lendas da África Ocidental, explorando o poder da divindade aquática que dá nome ao filme. Ambientada na vila costeira de Iyi, a história acompanha Prisca (Evelyne Ily Juhen) e Zinwe (Uzoamaka Aniunoh), filhas da sacerdotisa Mama Efe (Rita Edochie), que há décadas serve como ponte entre a divindade e seu povo. Quando Mama Efe falha em salvar uma criança doente, a fé da comunidade começa a ruir, abrindo espaço para a dúvida e o caos. A chegada do misterioso Jasper (Emeka Amakeze), que reivindica o controle da vila, intensifica o conflito entre tradição e mudança, colocando em risco não apenas o sustento de Mama Efe e suas filhas, mas a própria identidade da aldeia

Profundamente enraizado nas tradições, o filme ressignifica a figura mitológica associada ao poder feminino, ao misticismo e ao equilíbrio natural. Mais do que um elemento narrativo, a presença da divindade simboliza as forças espirituais que guiam e desafiam os personagens. Esses costumes se entrelaçam com questões contemporâneas, como a luta contra doenças e a preservação da cultura, refletindo o impacto do colonialismo e da modernidade sobre crenças ancestrais. Nesse sentido, a obra oferece um olhar sensível sobre como essas heranças ainda desempenham um papel vital na identidade e na sobrevivência de uma comunidade em um mundo em transformação. Essa abordagem encontra paralelos com Atlantique (2019), de Mati Diop, que também explora mitos aquáticos e espiritualidade dentro de um contexto de crise social. Ambos os filmes utilizam a água como metáfora para forças que transcendem o entendimento humano, evocando o misticismo como um elo entre ado e presente, vida e morte. 

O protagonismo feminino, assim como no longa de Diop, é também um dos aspectos mais marcantes do filme de Obasi. Prisca e Zinwe não são apenas figuras que enfrentam desafios pessoais, mas também representações da força feminina que resiste para preservar sua cultura e seu povo. A própria Mami Wata, como entidade mística, reflete esse poder, ora como protetora, ora como catalisadora de conflitos. A obra evita estereótipos e constrói personagens femininas complexas, destacando sua importância nas narrativas africanas com uma profundidade rara no cinema contemporâneo. 

Outro ponto que se destaca é a escolha acertada do preto e branco, que vai além de uma opção estilística e torna-se uma ferramenta narrativa fundamental. A cinematografia de Lílis Soares cria uma atmosfera de mistério e introspecção, em que a ausência de cores reforça a dualidade entre o mundo real e o espiritual. O contraste entre luz e sombra acaba acentuando as tensões da trama, refletindo os dilemas internos dos personagens e o embate entre tradição e modernidade. A fotografia trabalha de maneira precisa para evocar esse conflito, transformando cada enquadramento em um jogo visual que sugere tanto o desconhecido quanto a presença iminente do sobrenatural. 

Essa estética também amplia a sensação de suspense e fantasia. As sombras criam um clima claustrofóbico, enquanto os momentos de maior intensidade mística são envoltos por uma luz etérea, desafiando a percepção do espectador sobre o que é real e o que é fruto da fé. A cinematografia não apenas sustenta a narrativa, mas amplifica sua imersão, tornando a experiência visual tão hipnótica quanto a história que se desenrola. A importância dessa abordagem foi reconhecida no Festival de Sundance, onde o filme recebeu o prêmio de Melhor Fotografia na categoria World Cinema Dramatic. Como disse Lílis Soares: "Como diretora de fotografia, tenho em mãos uma oportunidade incrível de visitar minhas raízes e explorar profundamente os códigos estéticos negros e diaspóricos. Podemos usar essa posição para mudar realidades, para criar outro olhar e narrativas. Estética é política."

A evocação do sobrenatural e da justiça através de um espírito feminino protetor também remete a La Llorona (2019), de Jayro Bustamante, que, ao reinterpretar uma lenda ancestral, a transforma em um comentário sobre opressão e resistência. Assim como Mami Wata, o longa guatemalteco ressignifica um mito para explorar o impacto da tradição e da espiritualidade sobre o presente, mostrando como o ado continua a assombrar e a moldar o futuro

Essa fusão entre o real e o místico é um dos grandes trunfos do filme. A direção de C.J. Obasi trabalha essa ambiguidade com precisão, diluindo os limites entre os dois mundos e construindo uma atmosfera de inquietação à medida que a trama avança. O resultado vai além de um simples conto folclórico, e vira uma experiência cinematográfica densa, carregada de simbolismo e emoção. 

Mami Wata reafirma a força do cinema africano, capaz de emocionar, provocar e ensinar, ao mesmo tempo que oferece um reflexo poderoso das tradições e da identidade de uma região dinâmica e expressiva. Mais do que uma representação da cultura nigeriana, a fábula de Obasi é uma história universal sobre resistência, pertencimento e a busca por significado, nos convidando à uma reflexão sobre espiritualidade e os mistérios da existência humana.

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